Vinte anos mais tarde, ao passar por uma loja de brinquedos e se ver por trás das gotas de chuva que dançavam em um palco de vidro, Geraldo se lembrou de quando ainda era criança, e das noites frias e secas de Julho nas quais era a unica criança a brincar sozinha na varanda de casa, ouvindo os adultos conversarem. Sentiu na memória o aroma denso e branco da fumaça que saía do cachimbo de seu pai. Toda noite ele dizia ao filho "homem que é homem pita cachimbo."
O pai aproveitava as ocasiões para mostrar ao filho o significado de crescer para se tornar um homem. Não um desses que as mães parem aos montes a cada troca de Lua, e que estão sempre ocupados demais em nascer e morrer. Nessa família tem que ser homem pra tudo na vida. Um varão digno dos Ferreira tem que ser justo e impiedoso, leal e ambicioso, forte e, jamais, sensível.
Era visível que o garoto tinha futuro. Apesar de ter nascido um bebê franzino, se tornava cada dia um menino mais forte, com cara de juiz.
Aconteceu na semana em que completaria oito anos. Seu pai chegou em casa mais cedo com cara de criança que nunca viu um palhaço. Demitido. A mulher, que respeitava o marido, mas que sempre quis ser atriz, nada disse. Limpou as mãos no avental meio engordurado e foi fazer café. Aquela foi a primeira noite em que jantaram apenas Geraldo e a mãe.
De súbito vieram os tempos difíceis, e mesmo criança, que ainda era, Geraldo assistia entendia em siliêncio que a casa não era mais a mesma. Seu pai não era. A comida que virava bebida, a mãe que escondia o rosto, os anjos que o haviam abandonado. E o homem pra tudo na vida?
Outra noite que jantaram só os dois. A mãe se preparava para dormir e penteava os cabelos do filho, que se olhava ao espelho e só via vampiros. Toca a campanhia. Geraldo vai atender, em sua inocência infantil, abre a porta para dois homens que nunca tinha visto. Também não viu quando foi empurrado e caiu no chão com violência. Aos gritos e chutes os invasores impuseram o medo e reviraram a casa em busca de qualquer coisa que pagasse a aventura. E vendo que entraram em casa de gente mais pobre que eles, atacaram o único bem que valia a pena.
Geraldo não podia se mexer mais de medo que qualquer coisa, e assistiu, como um cego que sonha com a própria morte, aquela que havia lhe dado à vida ser violada aos berros.
O garoto não podia nem correr, pois não queria abandonar a mãe, tampouco podia protegê-la. E chorando por dentro em soluços de sangue chamava pelo pai. Onde estava aquele que o ensinara o valor de ser homem, aquele que deveria proteger a família e a casa? E agora era obrigado a assistir dois homens num espetáculo de selvageria humilharem sua mãe. Hienas é o que ele pensava engasgado em lágrimas. De madrugada o pai chegou em casa e acordou a mãe pra lhe esquentar o jantar.
Eis que no dia seguinte o Sol se esqueceu de nascer, nem a Lua mais tarde apareceu, e o garoto que crescia para virar Ferreira não tinha mais nada no que acreditar na vida, e a sua se perdeu e encontrou em si.
Ver seu reflexo diante daqueles brinquedos fez sentir-se tanta pena que não se coube. Aquela era mais uma noite que Rita se entregaria a homens carentes de amor.
ph
segunda-feira, 16 de julho de 2007
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5 comentários:
posso falar? ainda estou pensando no que me emocionou mais: se foi o conto em si ou a surpresa do post.
valeu, pulim! é noise.
Amigo ... Parabens!
Galera, essa idéia foi animal! Vcs me surpreendem em cada post. Espero que dê certo! To curtindo muito.
nossa, to emocionada
mto bom mesmo, parabens!
mas no proximo faz algo com mais alegria ok? nao quero mais ficar chorando no trampo..
hahah
bjos
estômago embrulhado e orgulho!
uauuuuuu
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